PREVIDÊNCIA FUNERÁRIA
Por ocasião do enterro de “seu” Inocêncio, os poucos amigos que lá estiveram fizeram mesuras a respeito do bom velhinho.
No discurso de despedida alguém, em rápidas palavras, descreveu sua aparência física frágil e sua nobre silhueta moral.
O caixão foi fechado e, depois do funeral, todos cabisbaixo voltaram para suas casas.
Dona Zoraide, a dona da pensão foi a que mais sentiu, se não a única que verdadeiramente sentiu a falta do “seu” Inocêncio ou do aluguel que ele pagava-lhe pelo quartinho.
Ele era bom, generoso, nunca atrasou um só mês de aluguel. Pagava religiosamente. Quase não comia em casa, saia muito.
Pouquíssima vez se recordava que tivera família e filhos. Seu olhar se orvalhava e ele disfarçava passando no rosto um lenço amarrotado que sacava do bolso do paletó.
A dona da pensão sentidamente suspirava; - Quando vou encontrar outro inquilino como ele. . .
Um mês depois da cerimônia fúnebre do bom homem, eis que estaciona um carro de funerária na porta da pensão. O motorista era um homem de paletó, gravata e pasta na mão à procura do “seu” Inocêncio.
A vizinhança queria saber:
- O que aconteceu?
- Quem morreu?
As perguntas eram todas aquelas que são feitas quando ambulância, bombeiros, polícia e funerária encosta seus carros na frente de alguma casa.
Alguns, os mais curiosos, se achegaram para perto da porta da pensão com o intuito de ouvir o que o homem engravatado estava falando para dona Zoraide.
Depois de cumprimentar, educadamente a senhora, o homem com a pasta perguntou:
- O senhor Inocêncio mora aqui?
- Morava.
- Como?! Ele se mudou? Deixou o novo endereço.
- Não ele não se mudou e onde ele foi morar eu não sei.
- Que aconteceu com ele?
- Morreu.
O homem, surpreso, esbugalhou os olhos na direção de dona Zoraide e virou uma locomotiva.
- Minha senhora eu sou da funerária, isso não pode ter acontecido.
- Como não, muita gente morre de repente!
- Não pode ser. Há pouco mais de um mês “seu” Inocêncio encomendou os serviços funerários como medida preventiva, ou seja, para o futuro, entende. Ele não pode ter morrido. Onde é que ele foi enterrado?
- Foi tudo feito como estava no papel da funerária.
Furioso, o engravatado irrompeu pela pensão á procura do velho e por mais que a dona do estabelecimento explicasse que o bom velhinho estava morto, o agente parecia não entender. Daquela pessoa fina e treinada para promover vendas, o homem foi se transmudando para uma fera em busca da presa.
Filho da mãe, desgraçado, caloteiro, pilantra tudo isso foi pouco diante dos demais impropérios pouco literários.
A dona da pensão boquiaberta pedia respeito a ela e aos mortos.
Nada calava o homem, não adiantava, a fúria do vendedor estava no fato do bom velhinho ter encomendado os serviços em quatro parcelas no crédito e, de repente a conta bancária não existia mais.
- O Banco não vai cobrir a dívida e vai cair tudo nas minhas costas. - gritava o rapaz.
O que o homem não entendia era porque o bom velhinho teve um colapso repentino antes de pagar a conta!
- Eu devia saber, gritava ele, não devia ter vendido os serviços a um velho. Vou ter de cobrir as despesas.
O nó da gravata já estava afrouxado. . . O paletó jogado no espaldar de uma cadeira. . . e , agora, desabotoava o botão do colarinho.
Suava a não poder mais.
Num momento de lucidez, gritou: - Ele tem família?
- Nunca nos deu notícias dela a não ser em alheias lembranças.
- Salafrário.
- Pare de xingar o defunto!
- Que defunto, minha senhora, se fosse um defunto, juro que eu o arrancaria da cova para pagar o que me deve.
- Isso lá é verdade, ele não ficou um defunto, suas cinzas foram espalhadas nas areias da praia. Foi uma cerimônia de cremação muito bonita.
- Ainda mais essa, pediu para espalhar suas cinzas nas areias da praia para que ninguém o encontrasse mais.
A dona da pensão tentava amenizar aquela situação e:
- Foi tudo feito do bom e do melhor, muitas coroas, flores. Foi o funeral mais luxuoso que eu já vi.
- Tenho certeza, minha senhora, tenho certeza porque foi o funeral mais caro também. . . Passando o lenço pela testa molhada de suor arriscou perguntar: - O desgraçado sabia que ia morrer?
- Não senhor, ele morreu quando leu o conteúdo deste envelope, o médico atestou enfarte fulminante.
O agente, calado, pegou o envelope com o timbre da funerária “Repouse em Paz”.
De volta ao escritório se apresentou ao sócio e logo foi falando:
- É melhor nem mexer nisso. O pessoal dos serviços cumpriu o contrato.
- Como cumpriu o contrato?
- O velho morreu antes de pagar a primeira parcela e a conta no Banco está encerrada. Enfarte fulminante quando leu o valor da fatura.
- Não lhe deram o orçamento na hora?
- Deram, mas, como ele queria um bom serviço, assinou tudo sem ler pagou com cartão de crédito.
- Ah! Entendi.
Cabisbaixo, o dono da Funerária resmungou: - Sinceramente, esta é a primeira vez que um defunto nos dá um tombo!
- É acontece. Sempre tem uma primeira vez! – respondeu o sócio, vendedor.
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