O PRESIDENTE
O nome do homem não importa e o lugar é lá, numa zona rural, perto do córrego da Onça, onde de tudo acontecia um pouco.
Ele adentrou-se na sala para uma reunião comunitária de emergência. Na condição de Presidente, já sabia que durante os debates somente não sairia tiro, porque, de resto, até palavras pouco literárias ecoariam pelas janelas abertas fazendo corar as vacas pastando tranquilamente ali por perto. Mas, naquela reunião, diferentemente das demais que não se falava quase nada, o assunto foi sobre a chuvarada da noite anterior.
Uma árvore fora arrancada pela ventania e estava atravessada na estrada principal; parte do morro da Jurubeba desmoronara interditando a estrada secundária; a ponte sobre o rio Biririca caíra e o córrego da Onça ficara encalacrado por detritos nas águas provocando enchente em toda a baixada do Troncoso.
O Presidente ouviu e ouviu, percebendo que o caso era chumbo grosso, trabalho que não acabaria mais, não somente pela mão de obra, mas pela falta de recursos. A Comunidade não tinha dinheiro em Caixa, a Prefeitura não ajudava porque as propriedades daquela região eram particulares e os vereadores nem sequer davam uma mãozinha. Não era época de eleição, nem de campanha!
O Presidente ficou com a cachola fervendo e, durante os debates, pelo menos em pensamento resolveu que cairia fora, já estava velho mesmo, que arranjassem alguém mais novo capaz de resolver aquela atrapalhação que o mau tempo fizera.
De volta a casa continuou pensando: não moro naquelas bandas, não uso aquelas estradas, não passo por aquela ponte e a enchente não atingiu o meu pasto. Que se virem!
Mas, homem de vida simples, honrada, daqueles que um fio de bigode valia por um recibo e a palavra empenhada não voltava atrás, parou na venda da estrada matutando se o que estava decidido fazer era o certo.
Conversando com o vendeiro sobre a tempestade da noite anterior, foi bebericando um trago, outro e mais outro. A cachaça era aquela das boas lá do alambique da fazenda Muriçoca. Ele pensava, uma vez ou outra não faria mal.
O sol já ia lá pelas três da tarde e o Presidente deu adeus ao vendeiro. Num ziguezaguear desordenado, tocando galinhas, lá ia o homem pela estrada rumo à sua casa esquecendo-se da bicicleta na venda.
Lá adiante, tendo ainda uma légua pela frente, sentou-se à sombra de um arvoredo. À sua frente desfilava uma cerca e ele ficou olhando cada pau fincado lado a lado presos por quatro fios de arame farpado. De repente, ele teria bebido demais ou um pau de cerca estava se mexendo e ia falar alguma coisa!? Esfregou os olhos com força, olhou novamente, a coisa era séria. Sua bebedeira estava-lhe fazendo ver e ouvir coisas.
- Hei amigo, você está querendo acabar com o grupo comunitário? Por quê? Seus vizinhos confiam em você. Você é a pessoa certa no lugar certo.
- Qual nada, não sou nada naquela comunidade. Só me escolheram para Presidente por respeito. Sou morador mais antigo da região e também o mais velho.
-Não se desmereça. Olhe para mim. Um dia fui brutalmente arrancado de uma frondosa árvore que todos os anos floria lá na mata. Depois fui fincado neste buraco em que estou, sonho em atravessar o pasto e voltar para a bela floresta de onde vim e ficar feliz para sempre...
O Presidente ia dizer alguma coisa, mas a voz continuou: - Você já imaginou o desarranjo que causaria a minha saída daqui para gozar as delícias de uma vida sem preocupação?
O Presidente estava boquiaberto. Estaria conversando com um pau de cerca?! Esfregou os olhos novamente e resmungou: - Eu bebi demais ou estou endoidando! Deu-se um tapa na cabeça e completou:- Pau de cerca não fala, sua besta!
Pôs-se de pé, e numa ginga só dirigindo-se ao pau, perguntou: - Você também está querendo cair fora assim como eu? Deu os primeiros passos. Tropeçando aqui e ali, continuou andando e falando aos paus de cerca alinhados ao longo da estrada.
- Por estas bandas já ouvi muitos casos, de saci montando garupa de cavalo; de mula sem cabeça assustando tropas de burro, mas pau de cerca falando é a primeira vez e, num instante de lucidez:- Também é a primeira vez que encho a cara de pinga até não poder mais.
Já bem lá adiante, refrescou o rosto nas águas de um riacho. Em casa, justificou-se com a patroa, depois, de esguelha, olhou a cerca que separava o quintal de sua casa do pasto. Chamou a mulher. Lá veio ela enxugando as mãos num pano de prato, feito de saco, todo bordado pelas beiradas.
- Mulher, que você acha da gente tirar aquele pau velho da cerca?
Estranhando o estado do marido e da pergunta, sem dar muita atenção, respondeu simplória:
- Se não se colocar outro pau no lugar, a cerca enfraquece e pode cair.
Voltou à cozinha arrastando as chinelas de pano e a toalha de pratos sobre o ombro.
O Presidente, com a cabeça arrebentando de dor, aproximou-se da cerca e do tal pau.
- Meu velho, vê se agüenta um pouco mais até que se arrume um substituto para o seu lugar.
As pernas fraquejaram e o Presidente esborrachou-se ali mesmo, tendo a mulher, pacientemente, o recolhido à casa.
No dia seguinte, ainda com peso na cabeça, o homem selou a mula e foi ao encontro do grupo comunitário para uma segunda reunião. Lerdamente seguia.
Ao passar pelo arvoredo da véspera, desconfiado, foi diminuindo ainda mais a marcha do animal. Parou em frente ao tal pau que na véspera falara com ele, mas o pau estava imóvel, calado e parecia surdo também. Pelo sim ou pelo não, olhou dos lados e certificando-se que estava só, confessou:
- Estive pensando naquilo que você me disse ontem. Resolvi continuar no meu posto, afinal ninguém tem culpa de ter chovido tanto, e ademais entendi que embora não sendo um mourão, de certa forma sou parte daquela cerca.
Jogou o cigarro de palha fora, cuspiu longe, ajeitou o chapéu na cabeça e se foi.
* * *
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Todos nós estamos ligados a uma “cerca” e devemos ter consciência que ela somente se manterá firme com nosso apoio.
ResponderExcluirAinda que nós “mourões” tenhamos, nos desgastados com o tempo sempre seremos útil porque sempre poderemos nos transformar em lenha e aquecer todos aqueles que permaneceram em nosso cercado.
Zizzi 18/03/10